segunda-feira, 25 de abril de 2011

Pra aquecer



"Querido,
Você provavelmente está rindo o seu sorriso mais doce ao ver o meu embrulho chegar, em algum lugar aí dentro você deve ter previsto que cedo ou tarde eu enviaria meu coração dentro de uma caixa, já que a chave você julgou sempre pertencer.
Por dias eu quis arrancar o peito e te enviar sim, depois veio a raiva e tivesse eu contatos terroristas um pó estranho chegaria pelo correio.
Mas passou o temporal e veio o vento com seu cheiro sabe? Maldito perfume esse seu que não há banho que afaste.
Então por favor, para começar, desfaça o sorriso, não te mando boas novas, sinto muito. Não são boas e nem novas, são apenas notícias de uma vida que vai seguindo em frente. Aqui e ali tropeço com suas roupas jogadas no sofá, sua toalha sobre a cama e a sua mania de apertar a pasta de dente no meio. Eu te persigo na memória e te expulso na vida real, coisa insana.
É que não dá pra te querer pra sempre, não com você aí, sem saber ao certo o que fazer. Não dá pra deixar a janela aberta todas as noites esperando e confiando que uma hora você vai se tocar da minha ausência, se tocar da sua ausência e me trazer de volta o que me falta. Maio vem aí amor e está esfriando aqui, preciso fechar as portas que te esperam.
Foi sua opção, não a minha, mas que bem que lhe quero aqui dentro!
Sabe aquela coisinha da gente passar a tarde de mãos dadas olhando para as árvores balançando suas folhas e dizendo que com a gente ia ser tudo diferente, é.
É diferente porque as pessoas dizem que a gente acabou, mas eu me lembro de você me deixar sorrindo com um beijo na testa e ir-se indo. Gerúndio não aceita ponto final, é contínuo e a gente ainda vai construir alguma coisa, sei que vai.
E mando então madeira. 
Sou uma tolinha amor, mas eu sei que não há calor aí também. Sei que o frio que faz nos meus pés não são suas meias que vão alterar.
Mando matéria-prima da fogueira que preciso que te aqueça, imagine que fui até a árvore que era nossa paisagem distante e pedi permissão para arrancar alguns galhos. Expliquei que era causa justíssima amor. Ela deixou.
Lembrei você lendo Clarice e me dizendo que me amava do seu jeito de apanhar gravetos.
Pega a caixa e sente, tem fogo morto esperando nascer aí. Faz favor de ligar.
Faz favor de colocar aí no seu peito murcho que você está tentando fingir de cheio, deixa aquecer e colorir seu rosto, deixa avivar os olhos e quando estiver queimando tudo, vem pra mim.
Imagine a confusão pra eu me convencer que não enlouquecera de vez ao te enviar pedacinhos de pau, insistia que era o jeito, não há que se fazer quando o outro insiste em comer terra pra esquecer que já foi mais que um.
Agora amor, aquele sorriso do início, quando você colocou os ouvidos no embrulho e tentou ouvir um turu-turo desafinado, volte com ele.
Razão não queria lhe dar, mas é sua a chave.
E é seu o fogo.
Junte tudo com carinho e me traga uma fogueira linda.
Faz favor amor de vir logo que o fogo é grande e pode queimar tudo se você não dividir.
Tenha medo não que está escuro, mas a claridade vem contigo, e se a janela estiver fechada incendeie que acordar em meio ao fogo nosso vai ser no mínimo maravilhoso.


Com carinho de um coração teimoso,
Beijo,
Tay.



(Texto escrito para a edição cartas do Projeto Bloínquês)

segunda-feira, 18 de abril de 2011

De pano e chumbo




"Chega pra envolver
Envolver querer"


Era uma vez uma boneca de pano e um soldadinho de chumbo.
Ela tinha no peito costurado um coração-botão firme e decidido. Ele tinha nas pernas a força do metal trabalhado. Mas tinham que se encontrar pra distrair certezas porque uma vida toda feita antes da gente nascer não é tão bela quanto uma história inventada aos poucos, palavra por palavra.
Dele veio aquele encanto pela alma bailarina que ela tinha, o olhar desenhado que prometia tanta coisa. É que ela sorria, ele dizia. É que ele calava, ela não entendia.
Sem ensaios ou frases prontas, mas cheio de um medo que não é comum em soldados ele tentara uma aproximação, mas não haviam planos e mapas para se achegar ao território da boneca de tecido e alma leve.
Por palavra não fora, por receio bem menos, cautelosamente ele ia desejoso de que a paciência vencesse o receio, teimosia ou o nome que dessem.
E ela com aquele sorriso tão delicado enxergava a aproximação sem entender o burburinho interno por ver o desajeito de um soldadinho.
Ela queria que ele conseguisse, no fundo e no meio de um monte de algodão ela queria que ele a tocasse para que o tecido se misturasse por alguns instantes com o bronze.
E então, da forma que só quem acredita em contos de fadas entende, em uma noite comum a prateleira ficou pequena pra grandeza de um toque. De um abraço. 
Do que veio e fez a história.
Ela sorriu aquele sorriso de boneca de pano.
E ele teve a certeza típica dos soldadinhos de chumbo.
Junção poderosa que fizera lá longe estrelas no céu, porque não era só a força e a delicadeza que abraçadas perfumavam o mundo.
Era um carinho que agora era parte dos dois e tornara o algodão mais macio, o bronze mais brilhante.
Ele adorava perguntas. Ela vivia de questões.
E sem respostas mesmo quem sabe conseguiam ir em frente, mãos dadas.
É que tinham uma vontade de ser mais lá dentro deles e não sabiam a força que essa vontade tinha.
E quando lá na frente fossem contar a história de dois personagens tão atípicos as pessoas se lembrariam de como é mágico o jeito dos contos se tornarem reais.
O jeito que o encanto acha para acontecer em corações-botões e de se fazer agir em pernas tortas de chumbo.
Era uma vez uma história que começava a ser escrita.


(Ao som encantado de: Tema de Amor - Marisa Monte)

sexta-feira, 15 de abril de 2011

Nos olhos de quem vê


Com o mundo cada vez mais globalizado é tão comum ligarmos a tevê e assistirmos um massacre de inocentes em uma escola do Rio de Janeiro, um ataque terrorista em um país do Oriente Médio, uma guerra civil em uma ex-república soviética... Diante dos nossos olhos pesadelos reais bombardeiam a todo instante a ideia de que a bondade sempre vence.
Será que é ilusão acreditar que os bons são maioria? Será que é válido tentar fazer a diferença quando tanta coisa aponta o contrário?
Traficantes viciam crianças, pedófilos se aproveitam da inocência alheia, corruptos roubam nosso dinheiro... O mundo é caótico!
Mas haverá sempre o bom exemplo do taxista que encontra a mala cheia de dinheiro e devolve, do médico que dobra sua jornada de trabalho para ter folga e visitar doentes com câncer, da professora que arrisca a vida para salvar seus alunos.
Os bons são maioria, mas a bondade não vende, ela é discreta, ela não faz para aparecer.
Existem milhares de críticas em cima da nova propaganda da coca-cola, alguns dizem que a fórmula faz mal para saúde, outros que é um investimento em marketing que poderia ser destinado a coisa melhor, mas existe algo maior que tudo isso, a vontade de fazer com que os outros tenham esperança, com que entendam que há sim razões para acreditar.
Não porque uma propaganda diz, não porque nos filmes os bonzinhos sempre se dão bem, mas porque eu acredito que há algo superior que movimenta tudo isso, e essa força é bondade, é solidariedade, é a certeza de que por mais que a vida esteja tão banalizada, ela tem um valor grandioso e muitas pessoas enxergam isso, ainda e sempre.
Há razões para acreditar porque dentro de mim uma força diz que vale a pena, que a minha vontade pode não modificar o mundo, mas a minha força pode auxiliar nessa mudança.


(Texto para a edição opinativa do Projeto Bloínquês)

Em círculos


Nobody said it was easy
Ninguém disse que seria fácil
It's such a shame for us to part
É mesmo uma pena nós nos separarmos
No one ever said it would be this hard
Ninguém disse que seria tão difícil
Oh take me back to the start
Oh leve-me de volta ao começo

Eu via o modo como aquela mulher forte tornara-se repentinamente folha solta em outono, leve e triste, voando só pelo vento. Vagamente conseguia recordar o modo como ela falava sempre com fluência, sempre ciente do que dizia, e agora era uma voz que vinha de onde? Era como se ela fizesse força para respirar e ainda mais para dizer qualquer coisa inteligível. 
Era uma sombra do que fora um dia, uma sombra em dia nublado, ainda mais cinza do que o comum.
A praça deserta trazia a tudo um sentimento de dor que era palpável, algo que me sufocava e eu sentia que mais um pouco não conseguiria questionar nada, não cumpriria o meu papel de repórter.
Mas eu era apenas uma fã, sempre fora, lembrava do encanto de vê-la no palco, sempre tão viva, ágil, pulsante. E procurava sem me cansar por resquícios disso naquela atriz ainda tão nova. Havia?
Talvez, escondido lá dentro da alma dela, naquele lugar que eu jamais chegaria.
Minha vontade era dizer que tudo ficaria bem, não que eu soubesse muito disso, era uma vida dedicada ao trabalho para estar ali, famosa, com direitos. Não sabia o que era perder um amor, não sabia o que era ganhar um amor, nada relacionado ao tema.
Então de súbito me ocorreu pedir que ela descrevesse toda a dor, quem sabe isso faria algum sentido?
E ela foi dizendo tudo aquilo, o quanto desejara tanto estar com ele, mesmo com toda sua loucura de querer sempre mais e mais, mesmo com o medo de nada dar certo, mesmo com a carreira. Ela desejara do jeito que ela sabia, um jeito que era invisível, mas ela lera que o invisível é mais real.
E quando foi cobrado, ela fez escolhas, ela decidiu seguir o caminho dele, ela se jogou sem medo, se arriscou.
E ele não estava mais ali, agora, para dizer que valera a pena, porque por mais que não se precise, às vezes se quer ouvir isso.
Coisa traiçoeira aquilo que a vida lhe aprontara e ela agora não sabia mais como agir, como ir em frente, interpretar papéis que mesmo feitos para ela, não diziam nada. Tudo que ela fazia remetia a algo que poderia ter sido dito, e não foi.
Todos os sorrisos que dava em cena traziam sorrisos que ela gostaria tanto que tivessem sido verdadeiros, ao lado dele, os sorrisos que ela esperara para poder dar.
Como eu poderia pedir para ela voltar? Como se eu mesma desejava largar tudo e ir procurar viver tudo aquilo? Se pela primeira vez eu via aquela mulher tão verdadeira e o que ela me despertava não sentira em filme nenhum que ela interpretara?
Eu a vi secar as lágrimas, balançar a cabeça, esfregar os olhos sem maquiagem e mordiscar o lábio inferior.
E eu quis abraçá-la, tanto que não me contive.
Dei por encerrada a entrevista e na edição seguinte a matéria que se via não dizia uma palavra sobre a volta dela, sobre os planos para o futuro, sobre a carreira ou sobre a trágica história da mulher que perdeu um amor por acidente de percurso.
O que dizia era o que eu mesma conseguia sentir. A vida é traiçoeira, muito.
Uma história vivida por qualquer pessoa que se arrisque ou não, se a gente soubesse que o risco de morte é maior que o risco de vida, a gente saia por aí sem se preocupar com matérias em revistas. Sem se preocupar com encenações ou falas decoradas.
A gente ia atrás daquele clímax que precisa, porque nunca se sabe quando as cortinas vão se fechar, quando os créditos vão subir.

(Ao som de: The Scientist - Coldplay)
Texto para a Edição Roteiro do Projeto Bloínquês

quinta-feira, 14 de abril de 2011

Capture



Rapte-me camaleoa

Adapte-me ao seu
Ne me quitte pas


Eu a via todos os dias, em silêncios contados e suspiros anti-poéticos e havia algum jeito de não vê-la?
Sentado ali no meu mundo lar de uma calçada ela passava ao meu lado, com seu cheiro entre doce e cítrico e belo, um rastro de flores do campo atrás dela, sempre.
Ela passava vestida de sonho, olhar seguro e aquelas mãos que sempre viviam ainda mais que ela, as mãos que me atiravam uma moeda vez ou outra, sem saber que eu mataria ou morreria por um olhar, sem nada desejar das mãos além do toque.
Eu era invisível para ela, mas eu a sentia tão próxima, enxergava o modo como ela desepenhava sua função de boa moça todos os dias, cumprindo horários sem fazer planos, pela manhã. 
Mas eu jamais imaginaria o poder daqueles olhos marcados pela dúvida em uma noite de chuva. 
Ela passara por mim novamente, alguma coisa havia mudado, talvez fossem as mãos que estavam mais quietas, ou os passos mais firmes e o sorriso mais misterioso ainda.
Vi quando ela voltara, os olhos com o briho molhado, e ela olhara para mim.
Não como das outras vezes, ela me enxergara.
Quando dei por mim as mãos estavam estendidas, as minhas, era tanta vontade de sentir realidade que eu chamaria pelo nome dela, se soubesse. Camaleoa que se camufla e tenta ser parte do mundo de modo discreto, por temer a aproximação alheia.
E naquele mundo de chuva que embaça a alma e o vidro do carro, ela me estendeu a mão.
A mãos vivas que agora estavam ali, nas minhas limpas por milagre chuvoso.
E quando terminou o toque, feito criança eu apertei as mãos por muito tempo, tentando reter a essência dela, ali, para sempre comigo.
E ela se foi, mas voltava sempre, todos os dias, indo e vindo, mas morando em mim. 


(Ao som de: Rapte-me camaleoa - Maria Gadu e Caetano Veloso)

segunda-feira, 11 de abril de 2011

Porque eu não quero mais





Caríssimo Lado B,


Sabe que ando pensando no quanto você é medíocre? E para piorar, o quanto eu sou medíocre por permitir que você me governe algumas vezes... Lógico que você não é um assassino em massa que aflora dentro de mim e me faz cometer atrocidades, mas não se sinta melhor por isso. Você me mata aos poucos, e pior, você mata os meus sonhos. Os nossos sonhos.
Deve ter sido alguém que nos disse no passado que covardia era ser sensato e você acreditou. E você por tantas vezes me faz parar diante de um desafio por não poder errar. Quem foi que nos impôs que seríamos exemplos de perfeição? Me diz! 
Eu odeio o fato de me sentir insegura por sua causa, o fato de tremer ao escrever alguma coisa e você ficar me dizendo que eu deveria ir por um caminho mais fácil, porque o caminho que sempre escolho pode nunca deixar de ser um caminho de sonhos.
Eu não me importo de me parecer com Alice e tentar seguir coelhos brancos com relógios, eles me levarão a algum lugar. Ficar sentada esperando a vida passar não vai!
Por sua causa eu me importo com que os outros dizem e fico sempre com a sensação terrível que poderia ter feito algo para melhorar as coisas. Não posso, aprenda isso. Nem tudo está sob controle e mesmo que estivesse, nem tudo eu preciso controlar, eu quero.
Às vezes eu me lembro de quando era criança e você não existia, ou morava em qualquer canto da minha imaginação tão fértil que eu não te dava a mínima confiança. Eu pulava do balanço em movimento. Eu entrava no rio sem medo de me afogar e o melhor, eu sorria tanto, aquela risada que criança tem e que contagia.
Vá procurar o seu canto novamente e faça o favor de se aquietar lá. Fique estagnado e faça parte da paisagem, se é isso que você deseja. Mas cale-se.
Cale-se porque eu não quero acreditar que não sou capaz só porque errei em alguma coisa, eu não quero achar que sou pouco só porque a exigência é muita. Não quero me sentir pequena diante das coisas e muito menos diante dos meus sonhos. Eu sou do tamanho da minha vontade de vencer.
E você, você é do tamanho da minha fraqueza, é insignificante querido. Ponha-se no seu lugar!
Esqueça que um dia eu te ouvi, esqueça que você tem uma voz porque eu não estou disposta a deixar nada nem ninguém me fazer desacreditar que mereço o que batalho para ter. Ainda mais alguém dentro de mim.
Se eu tiver que passar madrugadas em claro por um sonho que pode não acontecer agora, um dia essas madrugadas terão valor e não vai ser você quem vai me fazer chorar ao constatar que o tempo das coisas não é o mesmo que o da vontade de que elas aconteçam.
Eu não sei mais quem você é, não escuto mais sua voz e finalmente, não acho que você seja digno das minhas palavras. 
Eu tenho mais o que fazer com elas, vou escrever o meu futuro.


Tay. 

(Texto para a 38ª edição cartas do Projeto Bloínquês)

domingo, 10 de abril de 2011

O descompasso de um coração de prateleira



So what if it hurts me?
E daí se isso me machucar?
So what it I break down?
E daí se eu desmoronar?
I'm just trying to be happy
Só estou tentando ser feliz

Alguém uma vez lhe dissera que coragem não era ir em frente, mas esperar e preservar o próprio coração. E ela acreditara.
Agora sentada ali, vendo-o se afastar cada vez mais na paisagem preta e branca dos dias de inverno, ela sentia doer ali dentro o coração que havia colocado na estante junto com livros que jamais abrira por medo de amassar as folhas.
Cabia tanta história no meio deles, tanta coisa pra viver. Eram tão clichês naquele modo de se parecer com qualquer casal de filme americano que se assiste na sessão da tarde: tão dispostos a estar juntos e teimosos em estar separados.
Mas ela sabia que vinha dela o maior receio, dela que não pulava até saber a profundidade exata, que não tocava antes de examinar e testar mentalmente as possibilidades do choque.
Ela era de papel, ele de borracha, flexível, afim de apagar marcas que ela nem sabia se tinha.
Não choraria, não conseguiria nem se tentasse. Mas lá dentro tinha uma voz aguda e desafinada que lembrava canções que não eram do seu gênero preferido, lembrava as mãos que ele tinha e que ela desejara um dia decifrar.
Aquela vozinha irritante que dizia que ela estaria mais sozinha do que sempre sem ele, porque aprendera a estar junto. A ter com quem dividir um sorriso e a tremer pálpebras do jeito que se tremia na tevê, diante dos galãs. E os dedos compulsivos martelavam os joelhos como numa ordem: 'mexam-se, mexam-se!'.
E as pernas teimosas não seguiam, não sabiam o que fazer.
Será que ela sabia?
Por que mesmo ele estava indo embora? Era porque ela mandara? Porque dissera que não queria mais a insegurança de não saber o que é, a insegurança que ele tinha também? Não era possível que ele desistira por tão pouco, por uma insistência boba dela em não estar juntos. Não era possível que ela insistira com tanta veemência e agora ele ia lá na frente, cabeça aprumada e passos em direção indizível.
Droga, ela queria que ele ficasse, mas era pedir demais querer que ele entendesse os dias ruins, que decifrasse os silêncios e se sentisse mesmo assim, apesar de todos os pesares e entrelinhas, querido. Homens deveriam ser menos pragmáticos, bem mesmo. Foi o último pensamento dela.
- Espera! 
Conseguiu gritar e quando notou o som que saíra era daquela voz desajustada que berrava lá dentro.
Ele se voltou para ela, sem meio sorriso e sem brilho de olhos, um virar de pescoço de quem tantas vezes já esperara a cena que agora nem acreditava mais que ela estava acontecendo.
- Espera...
Ela insistiu com os olhos baixos da vergonha de quem sempre devia ter deixado claro quais eram as intenções.
Forçando as pernas levantou-se, bateu as mãos nos joelhos no gesto de quem tira a poeira acumulada e dirigiu-se até o homem ainda mais incerto que a encarava.
- Eu não vou pedir para você ficar. Não se nem eu mesma consigo entender o mundo complexo que é aqui dentro.
E era tanto silêncio que caberia em uma história da Clarice.
- Não fique... Mas será que a gente pode ir em frente junto? Acho que você pode me ensinar...
Só então ele soube sorrir, deu o sorriso que dizia sim, que dizia 'vambora'.
E foram os dois, sem saber para onde.

(Ao som apaixonante de: Happy - Leona Lewis)
Texto para a 64ª edição visual do Bloínquês

terça-feira, 5 de abril de 2011

Never more again



I never thought I'd be speaking these words
Eu nunca pensei que estaria dizendo essas palavras
I never thought I'd need to say
Eu nunca pensei que precisaria dizer



Como seria se você pudesse salvar tudo?
Bem, primeiramente você precisaria continuar sendo o mesmo, sim, o mesmo. Não é de você que não gosto, é do modo como muita coisa acontece.
Sendo o mesmo você mudaria algumas atitudes, por favor? Você poderia se achegar com força porque eu não quebro, não tão fácil. Você viria com cheiro de chuva caindo e inundando a terra? Teria coragem de tirar o pé do chão e arriscar o tapa? Porque assim eu teria prazer, eu teria todo prazer em esperar por você.
Aliás, está aí outra coisa: esperar.
Dizia a raposa que amamos aquilo que aprendemos a esperar, você devia rir um meio sorriso às vezes e me deixar sem ar por não saber o que estou fazendo ao certo ao seu lado. É, eu sou estranha.
A gente não gosta da insegurança, mas aqui dentro a gente nunca consegue ter certeza o tempo todo, todinho.
Então quem sabe se você se permitisse ousar um puxão de braço e um beijo no escuro? Quem sabe se você não me pedisse, mas me tomasse por direito, não estou aqui, não estava? Era uma escolha, você deveria ter notado.
Se eu dissesse o que fazer seria sem mágica, porque não é que você devia ter adivinhado, mas que devia sentir aí dentro a hora de dar o passo, o salto, o beijo.
E eu fecharia os olhos e ainda que viesse frio ou gelo, eu me sentiria aquecida. Não é assim que as pessoas se sentem nos braços alheios?
Buraco não cabe de sentir, é feio, pouco digno.
Não que eu precise que alguém me complete, mas é que... Ah, se é um par, é um par. Não tem respostas, não sei dá-las.
Se houvesse um jeito de mudar tudo talvez não mudássemos nada, tudo tem um motivo.
Você tem um jeito bom de me fazer feliz, pode continuar tendo, por favor?
A gente divide outras coisas que não o peito, a gente divide sorrisos, eu quero assim.
Não é que eu pensei que fossem tocar sinos, não é que eu esperava o pé se levantar. É que faltaram coisas. Ou sobraram pensamentos. Não defini isso ainda.
E se você pudesse salvar tudo eu não gostaria que me pedisse permissão, eu gostaria que tentasse salvar do seu jeito, me mostrando que sou teimosa e pronto. Que viesse sem medo da dúvida ou do não.
Que viesse e que eu quisesse ir junto, pra qualquer lugar.

(Ao som de: Save me - Hansons)

sábado, 2 de abril de 2011

Pra você não escapar


 "Por ser lugar comum
Deixamos de extravasar
De demonstrar"

O apartamento estava escuro e a tempestade começava a tomar formas concretas, o vento invadia tudo da mesma forma que a presença dele, tempestuosa.
Quando a campanhia tocara em nenhum momento ela imaginou ser ele, por nenhum segundo sequer ela desejou que ele estivesse ali, não naquelas circunstâncias, não quando tudo dizia que era loucura e que era preciso foco, todo foco do mundo.
Mas os olhos de cílios longos pediram para entrar e ela ia dizer o quê? O não ficou preso na garganta junto com as milhares de outras palavras que já deveriam ter saído de lá fazia tempo mesmo. Em algum lugar longe habitava a sanidade, não mais nela.
Quando ele se jogou no sofá da sala e perguntou por todos, e insistiu para que saíssem e se desculpou pela visita inesperada ela se concentrou no mundo que ia desabar lá fora, mas até o vento vinha como ele.
Deixou estar por um segundo, mas não havia concentração que se firmasse em meio a tanta coisa que ele dizia. Onde mesmo ela tinha aprendido que tudo tem um motivo, uma razão?
Foi até o quarto e encostou a porta da varanda, a chuva chegaria e do jeito que prometia iria inundar tudo tão rápido.
No devaneio de seguir o rastro dela ele se viu lá também, os olhos negros lotados de censura e ele destituído de todo o medo, aquela loucura gostosa que tanto querer causam na gente. Os dedos doloridos de vontade de ter nas mãos o rosto, os lábios provedores do sorriso, o cabelo. A vida.
Rompeu com o limite imposto, nunca entendera o porquê dele.
E quando ele a puxou pelo braço e ela sentiu a pele ferver, quando ele se fez presente e ela sentiu o perfume que vinha da blusa de um tom forte e bonito, quando ele se aproximou o máximo que podia ela não conseguiu negar mais nada, nem o beijo, nem o medo, nem o mundo.
Não quis negar. Quis só que viesse e fosse como fosse, profundo e digno, se era pra ser que ficasse.
E se beijaram, os lábios dele tinham um toque tão macio e terno, um toque de delicadeza faminta. Os olhos fechados dela não viram o quanto foi mágico para ele, mas lá dentro ela sentia tudo tão forte que não pensava, não pensava.
Quando se desprenderam e notaram que a chuva havia chegado, tudo estava ainda mais escuro e tão claro.
- Eu tentei te esquecer. - ela juntou forças para quase soletrar, mais para se convencer.
- Eu não. Eu sabia que era impossível!
Foi o que ele disse sem medo, sem esperança. Só fé mesmo.
O que tem que ser tem muita força.


(Ao som de: Quando eu te Encontrar - Biquini Cavadão)

sexta-feira, 1 de abril de 2011

Essas verdades



Ana Terra tinha um orgulho original pela boneca de pano, ainda que as amigas teimassem que ela não tinha um coração. Ela podia encostar os ouvidos no peito e ouvir o som forte vindo lá de dentro, sempre.
Mas acontece que às vezes teimas mexem com a gente de um jeito ruim e a menina já cansada de toda aquela insistência pegou a tesoura sem pontas e abriu o peito de pano, era preciso alguma providência.
Diante dela o algodão branco apareceu e ali no cantinho esquerdo um botão vermelho amarrado por linha dourada pulou aos seus olhos, quase sangrando já.
Tamanha foi a tristeza por se perceber com o coração dela na mão que ela correu para a mãe, o pranto preso na garganta exposto nos olhos, implorando para que houvesse um modo de reaver tudo.
E a mãe fez um bom serviço, mas de noite a menina chorava de soluçar abraçada à boneca, ouvindo vez ou outra um sonzinho de lá de dentro.
Ela entendenria, só muitos anos depois, que a vida é assim. A gente por ouvir os outros e querer estar sempre certo das coisas abre o peito alheio sem dó por desejar enxergar e ter nas mãos aquilo que sempre esteve lá.
Quem foi que disse que pra ser real precisa ser palpável?

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