sexta-feira, 27 de abril de 2012

Da única vez que queimou


As brigas que ganhei
Nem um trofeu como lembrança
Pra casa eu levei
As brigas que perdi
Essas sim
Eu nunca esqueci


Começou na quarta série, menina que eu era cheia de sardas, cabelo castanho amontoado sem jeito num rabo de cavalo torto. Mamãe nunca tivera mãos para penteado.
Até então eu reinava soberanamente nos jogos de queimada. Magrela e ágil era disputada com direito à compra de passe em troca de merenda gostosa. Acontecia de vez ou outra me venderem por mochilas carregadas após a aula, quando todo mundo queria chegar logo ao campinho de terra batida para jogar bolinha de gude, soltar pipa, rodar pião ou brincar de qualquer outro modismo masculino.
Nós, boas meninas que nunca fomos, subíamos nas árvores e inventávamos histórias sobre os nomes que seriam gritados no outro dia ao pularmos corda.
Lembro de todo aquele Sol misturado com vozes infantis e cheiro de poeira. Era a delícia de ter todos os sentidos enlouquecidos por excesso de informação.
Um dia ele chegou. Garoto novo, vindo de um bairro distante, naquela cidade minúscula que para a criança que eu era parecia um mundo. Óculos fundo de garrafa. Ninguém te queria no time, era claríssimo seu semblante de quem nem sabia para onde ventava.
Surpresa tão grande foi quando você, tão sem saber bem o que fazer com a ola mirou em mim e fui queimada.
Você não sabia da minha reputação e menos de meio segundo depois já era o herói do time dos meninos. Torno-se popular como uma espécie de astro em ascensão.
Descobriram suas notas e suas proezas no jogo de damas. Os papos em cima das árvores sempre traziam o nome dele e crescia feito goiaba sem bicho no alto do pé a vontade de te vencer. Eu precisava te vencer!
Era a necessidade de pegar de volta minha fama de menina briguenta que nunca é queimada. Queria voltar a ser a melhor aluna, queria minhas amigas de volta.
Criava planos em que invadia seu quarto no bairro distante, quebrava seus óculos e deixava um bilhete desaforado em caligrafia bem trabalhada.
Eu te colocaria no seu lugar.
Quem dera preciso tivesse sido que eu criasse coragem para tal. Menos de dois meses depois, onde você estava? Escafedeu-se.
Professora mencionou algo sobre mudança para a cidade vizinha. Os meninos fofocavam que o pai era da polícia e fora transferido. As meninas suspiravam se vangloriando dos bilhetes que por vergonha contida tinham conseguido chegar até ele.
Eu não me conformava, só isso.
Como ele ousava partir assim, sem me permitir revanche? Como vinha e mudava meu mundo e ia embora?
Mulher já feita me peguei um dia olhando com carinho para a memória daquele menino, o quatro-olhos. Aquela compulsão por vencê-lo, meu primeiro amor.
Era algo que eu precisava ter vivido para entender que amar era isso mesmo, nada do que diziam os poetas apaixonados. Amar não era compartilhar, amar era competir.
Era disputar com o outro o território que sempre fora seu e que agora estava sob ameça, às vezes no domínio dado escondido ao oponente senhor dos nossos sonhos.
Talvez eu o tenha deixado ganhar aquela partida, tantos anos atrás.
Mas hoje, se me olhar no rosto vai ver as tristes marcas no sorriso, porque eu nunca mais me permiti perder.

Ele se foi e eu não consegui aprender que ganhar nem sempre é o que realmente se quer.


(Ao som de: Meu Universo é Você - Roupa Nova e Perdendo os Dentes - Pato Fu)

quinta-feira, 26 de abril de 2012

Do que é meu



Amor,
Sabe, não é de olhos que vou falar, porque você me conhece tanto que quando te olho não sei mais dizer. Eu até descubro que posso ter vergonha de dizer coisas banais só por pesar pestanas suas viradas pra mim.
Eu até posso sentir que existem organismos vivos multicoloridos, uma coisa meio movimento new hippie só de você tocar a ponta do cabelo me puxando pra me obrigar a chamar atenção.
Eu posso até sentir que é pra sempre. Eu que tanto tenho problemas com a tal da eternidade.
Veja bem, não sei sentir certeza, eu finjo bem, você sabe.
Mas sobre você, sobre você há todas as certezas do mundo dentro dessa mente confusa e um tanto dislexa minha. Estou certa que seu nome habitará minha memória até que eu fique velha e confunda cores e não saiba mais o nome dos filhos e netos e não saiba mais sobre o que comi no almoço. Sobre isso eu nunca sei mesmo.
Eu tenho certeza que mesmo que eu não tenha memória, eu terei você.
Eu tenho certeza que ainda que não hajam mais braços, mais espaço e mais tudo. Você vai estar aqui dentro me abraçando. Você vai me apertar e fazer o choro passar.
Você vai me fazer cócegas e vai me obrigar a sorrir para os outros e eu vou dizer oi para as pessoas porque você me mandará ser mais simpática. Você vai me preparar um lindo jantar que ficará pronto em três minutos e terá tanto sabor seu que não fará diferença ser miojo ou pão de queijo ou prato fino. É de você que veio.

E eu me pego idiota, nesse termo feio mesmo. Você me idiotiza. Até as melhores amigas custam a ter paciência comigo, juro. Quase sou atropelada porque depois de todo esse tempo eu ainda ouço Marisa Monte tocando no meu ouvido e sou obrigada a fechar os olhos me esquecendo completamente que os carros ainda passam nas ruas. 
Sinto tanta coisa que não sei dizer, sinto tanto entende? Eu sinto que você é parte de mim, uma coisa completamente diferente desses clichês de filmes porque não é tão simples assim, tenho vontade de ficar sozinha por horas, durante alguns dias você me irrita mais do que quase todas as pessoas juntas. E algumas vezes eu me pego suspirando vendo filmes e penso que deveria ser errado eu ter um amor assim, porque as pessoas me acham estranha por isso.
Não que as pessoas já não me achem estranha pelo simples fato de que talvez eu seja, um pouco.
O pior é que nem sei de onde veio tanta coisa sabe e você sorri quando eu fico triste e me sentindo um lixo e me pega pela mão e diz que eu posso simplesmente ser eu que você vai me adorar. E quando eu digo que quero títulos você diz que eu serei a sua, como é mesmo? Eu serei a sua. A sua o que eu quiser, um título que eu posso escolher, que eu posso mudar toda semana se me cansar. E eu fico triste por notar que já são quase 23 e eu não tenho meu sonho risonho e bochechudo fazendo caras e bocas no meu colo. Mas você me pega pela mão, me abraça a cintura e sussurra que eu não vou ter simplesmente um filho, você sorri, você sorri tanto que eu tenho vontade de querer parar tudo, eu me esqueço que tenho outras pessoas sabe? Porque você diz que eu não vou ter filhos simplesmente, eu terei os nossos filhos. E isso vai bastar porque eles vão fazer nossa casa barulhenta e você vai ensinar para eles tudo que me irrita.
E sabe amor, eu sei que eu vou ser feliz pra sempre assim, porque qualquer coisa que nasça de você, que tenha seu gene me fará feliz pelo simples fato de ser parte de você.
Isso que eu sinto tanto que sou.
Isso que a gente é, parte de algo nosso, só nosso.
Dizem naquela série adolescente que você implica por eu ver que ser parte de algo especial nos torna especiais. Fazem quase sete anos que eu me sinto a pessoa mais especial do mundo.
A sua pessoa.

quarta-feira, 11 de abril de 2012

Do sorriso que faz rir


Um pouco é culpa dos olhos, esses olhos de boneca de pano que foram feitos de semente de vento. Os olhos formam histórias, narram diálogos, os olhos vivos que fazem com que a gente fique bobo, só tentando entender como por olhos as pessoas contam tanta coisa.
Então vem o sorriso, assim tímido, feito quem entendeu a piada depois e ficou com vergonha por atrasar a alegria. No seu caso ele vem primeiro, você ri antes de entender, você entende antes das coisas serem contadas então o sorriso fica suprimido, cílios se abaixam e o sorriso nasce, abre portas e chega devagar, discretamente invadindo brincando feito sol de manhãzinha com vergonha de empurrar a cortina e entrar pra clarear a vida da gente.
E quando se pensa que não há mais jeito você diz coisas. Você guarda muito mas quando diz é tão sincera a voz, é tão real que se perde algo da lógica que se espera ter para não se contagiar o mundo com pieguice e clichês. Quando você diz os falantes de plantão ficam com vontade de emoldurar porque as palavras ditas, ainda que para dentro, são de força e fé e vontade e é tanta coisa junta que nem sei dizer. Onde estão meus adjetivos?
É tanto bem que quero que houvesse como fabricaria estrelas para que elas caíssem em uma coordenada geográfica definida, diria segredando para elas que a boneca de pano tem um varal e precisa de estrelas pra ter certeza que não haverá mais nada que não seja certo feito algodão doce rosa que é carneiro imaginado.
Pessoas passam pela gente e o lugar é tão seu que é como se você estivesse aqui desde antes, bem antes de eu mesma estar. Tem como?
Não tem como não esperar que você se zangue um pouco por tanta expressão assim, tanta coisa derrama em letrinhas feito sopa pra criança que não quer comer. Mas não dá para guardar sempre, tem hora que a caixa fica cheia de carinho e só há vontade de tentar dizer as coisas piscando o olho. Malinha que sou, é isso.
Não cabe conjugar alguns verbos porque agir é mais negócio, então nem vou dizer. Conto que você saiba. Que sinta.
Pequeno me diria que sou terrível.
Ainda bem que sou.
Coubesse agradecimento eu até faria, mas tem coisas que nem precisam ser ditas.

(Página 89, linhas 8 e 9)


sexta-feira, 6 de abril de 2012

Da única certeza da vida



I was just guessing at numbers and figures
Pulling the puzzles apart
Questions of science, science and progress
Don't speak as loud as my heart
And tell me you love me, Come back and haunt me
Oh when I rush to the start



Último parágrafo.
Ponto final. Sem sinal de reticências alguém se aproxima e toca a mão gelada, apática. Houvera vida ali, não há mais. 
O ofício termina. Só o dia parece não ter fim. Faz calor, você está morta e faz calor. É setembro, as flores estão começando a aparecer, o céu tem aquele tom de azul que você gosta tanto e que sonhava que teria o quarto dos nossos filhos. 
É setembro e você está morta. 
As flores estão ao seu lado, há flores em tantos lugares e eu só queria que você estivesse aqui e risse do quão ridículo parece a vida agora.
Alguém se aproxima e pergunta a mesma coisa, outra vez, toda hora. Eu não quero café, não quero descansar, não quero um abraço, não quero saber o que aconteceu com o dono do carro, não quero ter que recuperar os pedaços da bicicleta dela, não quero beber...  Eu não sei mais beber porque você pedia que eu fosse uma boa pessoa e eu adorava o modo como você sorria, como você sorria e jogava um pouco o pescoço para trás e franzia às vezes ruguinhas que nasciam no meio das duas sobrancelhas.
Meus olhos não aguenta mais, meus braços pesam, preciso de um café, mas andar significa mais pessoas. Mais abraços. Mais pêsames. E já pesa o mundo, será que você entende?
Queria jogar fora tudo que havia dento porque talvez a dor vá embora assim. Quero esmagar a cabeça porque não faz mais sentido, nada mais faz sentido. Tantos cálculos, tantos planos, tantos sonhos, tanta vida e nada mais tinha sentido. De repente eu não queria mais nada, não sei mais nada, não espero mais nada. 
Você morreu e de repente a sensação que eu tenho é que agora, agora com lágrimas entupindo tudo e mesmo assim não rolando, agora eu não tenho mais nada.
Alguém chama meu nome e eu sei que preciso me despedir, mas não quero. Você foi embora. Crueldade sem fim.
Você foi embora e não haverá mais o Sol batendo no seu rosto de propósito porque eu deixei a cortina aberta só para ver bobo o modo como seu cabelo brilha de manhã. Você foi embora e nunca mais o chuveiro vai gotejar por horas porque você não fechou direito. 
Você foi embora, mas eu nunca disse adeus.
Seria ridículo se todos percebessem que eu te amo bem mais do que sempre suportei pensar amar alguém? Seria absurdo se todo mundo entendesse finalmente que a vida vai continuar, mas parou aqui porque cadê você, cadê você reclamando que veio de salto mas pedindo para poder ir embora descalça? Cadê você porque eu preciso dizer que eu te amo o mundo inteiro. Eu te amo bem mais do que eu disse ontem quando você estava se despedindo para trabalhar, eu te amo bem mais do que eu disse todos esses anos, eu te amo e não quero que você vá. Por favor, acorde.
Todos esperam que eu diga alguma coisa, mas eu não posso tentar, você entende? Sei que você riria se eu dissesse alguma coisa errada e o fantasma do som do seu sorriso faz com que eu tenha novamente aquela vontade de jogar tudo ao chão e dizer coisas cruéis.
Apenas posso olhar para você. Como acreditar que será a última vez? Não dá para decorar tudo.
Último parágrafo, alguém se aproxima para cobrir de madeira seu rosto, não posso olhar, não posso impedir, não posso gritar com todos e mandar para lugares inabitados. Não posso roubar você para mim. Alguém pergunta sobre a fachada que você estava concluindo, espera que eu tenha respostas. Eu apenas te olho e você não está mais aqui. Talvez eu nunca mais tenha resposta para nada. Talvez agora eu feche o livro, não importa se a minha história ainda está no meio, a sua acabou.


(Ao som de The Scientist - Coldplay e Eu Nunca Disse Adeus - Capital Inicial)
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