sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

O que não foi ensinado


Ela descalçava as sandálias com a calma clássica que haviam lhe ensinado nos últimos dias, mas os laços que afrouxavam internamente insistiam em fugir do protocolo e ela segurava-se para não gritar, para não romper com toda aquela decoração perfeita, delicada e floral da qual fazia parte.
Refletia sobre o caminho que a trouxera até ali e não encontrava um vestígio sequer, um único modo de ter feito as coisas diferentes.
De longe ele a observava, era alucinador o silêncio no qual ela habitava durante todo o caminho, e ele a amava tanto que seria capaz de atirar contra o próprio pé para ver se algum ruído a movia de lá.
A desejara desde o primeiro instante, possuí-la valia mais do que qualquer outra coisa, ela, a filha de um qualquer que agora mostrava tanta compostura, ainda que mantivesse toda a brutalidade e força enterrada.
Revisando a memória novamente ele se deixou tomar e explodiu contra ela que apenas continuou imóvel, plácida.
- Me diga o que você quer, me faça trazer o universo para o seu lado, mas por favor, responda de algum modo.
Os olhos ao chão dela não consentiram ou calaram, apenas permaneceram pálidos.
- Quem é você que eu não conheço, que me desperta tanta coisa e que me faz perder os modos nobres?
Ela então o fitou.
- O que você quer que eu seja? Você me comprou. Diga, eu serei.
Era a primeira vez que ela lhe dirigia palavras assim, diretamente. E era novamente a menina que ele quisera com tamanha força, ela estava de volta e ele não poderia se arriscar a perdê-la.
- Eu não quero ser nada além de mim, de tal modo, eu não desejaria nada além do que você é. Não me enxergue com olhos tão cruéis, eu não sou o monstro que você pinta, você o sabe muito bem. Seja rude, grite e me ofenda, se jogue contra mim e me ame do modo como eu sei que você saberá fazer, porque você diferente de todas as outras é um fruto do amor, não da sociedade. Seja o que você quiser e queira ser minha. Não por ser seu dever como minha esposa, não por ser meu direito como seu marido. Mas por ser vontade do seu corpo de mulher. O que você quer?
Com o sangue pulsando de um jeito novo ela fitou os olhos negros e fortes dele, não mais sentindo-se vítima. 
E foi a primeira vez que ele viu a verdadeira cor que os olhos dela tinham.


(Pauta para a Edição Roteiro e Edição Musical do projeto Bloínquês)

4 comentários:

  1. Que texto forte! Me lembra aquelas histórias de princesinhas infelizes... Não há nada pior do que a exigência de ser o que não se é.

    Beijos!

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  2. Seu texto ficou ótimo. Em alguns pontos a personagem me lembrou Aurélia Camargo de Senhora.

    Parabéns!

    Abraços*

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  3. Lembra-me de uma vida em piloto automático... Ou talvez um brinquedo de controle remoto, o qual você perdeu o controle.

    Tenho um selo para você no meu blog, aproveite.

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  4. Olá!
    Adorei seu cantinho e agora te sigo!
    Beijos meus!
    Uma ótima semana pra ti!

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Lembre-se que você me faz feliz. Críticas serão sempre aceitas, desde que você use de um mínimo de educação. Eu jamais ofendo ninguém, tente prezar a reciprocidade.
Beijos!

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