domingo, 10 de abril de 2011

O descompasso de um coração de prateleira



So what if it hurts me?
E daí se isso me machucar?
So what it I break down?
E daí se eu desmoronar?
I'm just trying to be happy
Só estou tentando ser feliz

Alguém uma vez lhe dissera que coragem não era ir em frente, mas esperar e preservar o próprio coração. E ela acreditara.
Agora sentada ali, vendo-o se afastar cada vez mais na paisagem preta e branca dos dias de inverno, ela sentia doer ali dentro o coração que havia colocado na estante junto com livros que jamais abrira por medo de amassar as folhas.
Cabia tanta história no meio deles, tanta coisa pra viver. Eram tão clichês naquele modo de se parecer com qualquer casal de filme americano que se assiste na sessão da tarde: tão dispostos a estar juntos e teimosos em estar separados.
Mas ela sabia que vinha dela o maior receio, dela que não pulava até saber a profundidade exata, que não tocava antes de examinar e testar mentalmente as possibilidades do choque.
Ela era de papel, ele de borracha, flexível, afim de apagar marcas que ela nem sabia se tinha.
Não choraria, não conseguiria nem se tentasse. Mas lá dentro tinha uma voz aguda e desafinada que lembrava canções que não eram do seu gênero preferido, lembrava as mãos que ele tinha e que ela desejara um dia decifrar.
Aquela vozinha irritante que dizia que ela estaria mais sozinha do que sempre sem ele, porque aprendera a estar junto. A ter com quem dividir um sorriso e a tremer pálpebras do jeito que se tremia na tevê, diante dos galãs. E os dedos compulsivos martelavam os joelhos como numa ordem: 'mexam-se, mexam-se!'.
E as pernas teimosas não seguiam, não sabiam o que fazer.
Será que ela sabia?
Por que mesmo ele estava indo embora? Era porque ela mandara? Porque dissera que não queria mais a insegurança de não saber o que é, a insegurança que ele tinha também? Não era possível que ele desistira por tão pouco, por uma insistência boba dela em não estar juntos. Não era possível que ela insistira com tanta veemência e agora ele ia lá na frente, cabeça aprumada e passos em direção indizível.
Droga, ela queria que ele ficasse, mas era pedir demais querer que ele entendesse os dias ruins, que decifrasse os silêncios e se sentisse mesmo assim, apesar de todos os pesares e entrelinhas, querido. Homens deveriam ser menos pragmáticos, bem mesmo. Foi o último pensamento dela.
- Espera! 
Conseguiu gritar e quando notou o som que saíra era daquela voz desajustada que berrava lá dentro.
Ele se voltou para ela, sem meio sorriso e sem brilho de olhos, um virar de pescoço de quem tantas vezes já esperara a cena que agora nem acreditava mais que ela estava acontecendo.
- Espera...
Ela insistiu com os olhos baixos da vergonha de quem sempre devia ter deixado claro quais eram as intenções.
Forçando as pernas levantou-se, bateu as mãos nos joelhos no gesto de quem tira a poeira acumulada e dirigiu-se até o homem ainda mais incerto que a encarava.
- Eu não vou pedir para você ficar. Não se nem eu mesma consigo entender o mundo complexo que é aqui dentro.
E era tanto silêncio que caberia em uma história da Clarice.
- Não fique... Mas será que a gente pode ir em frente junto? Acho que você pode me ensinar...
Só então ele soube sorrir, deu o sorriso que dizia sim, que dizia 'vambora'.
E foram os dois, sem saber para onde.

(Ao som apaixonante de: Happy - Leona Lewis)
Texto para a 64ª edição visual do Bloínquês

5 comentários:

  1. Achei maravilhoso!!!! Espero conseguir escrever assim algum dia!!!!! Parabéns!

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  2. Que amooooooooooor esse texto =) Boa sorte com o projeto gatinha =)
    http://plush-love.blogspot.com/

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  3. Ai que saudade de passar pro aqui e de ler suas palavras sempre tão fáceis de encontrar morada no coração... Lindo texto Tay!
    É difícil dizer a parte que mais gostei, por que tudo se encaixou perfeitamente, desde a frase do início sobre coragem, ao ponto final!!
    Parabéns

    http://novidades-online.blogspot.com/

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  4. Olha, seu blog é super lindinho e espero que tenha sucesso e boa sorte na edição,tbm to participando hehehehe

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  5. Mesmo não sendo uma história da Clarice, esse texto mostrou-me um belíssimo brilho, intenso e indiscutível, a cada linha lida. Um excelente texto, e eu adorei a metáfora feita em relação a borracha e ao papel. Ressalto que também gostei da suavidade triste como a personagem demonstrou os seus sentimentos e frustrações. Eu não encontrei erros ortográficos e a história adequou-se muitíssimo ao tema. Um texto sem exageros, sem doses extras. Parabéns mesmo!
    Avaliação – Projeto Bloínques.

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