sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

Do que não é permitido dizer


Nobody said it was easy
Ninguém disse que era fácil
It's such a shame for us to part
É mesmo uma pena nós nos separamos
Nobody said it was easy
Ninguém disse que era fácil
No one ever said it would be this hard
Ninguém nunca disse que seria tão difícil

Era a primeira vez que saíamos desde que papai havia descoberto que eu morreria da mesma maneira que ela, aquele assunto proibido nas conversas paralelas durante o jantar quando a madrasta desviava os olhos e meu irmão apenas se perdia olhando o prato sobre a mesa.
Mamãe morrera sem que eu tivesse a chance de aprender com ela como homens conseguiam arrancar sorrisos feito os que ela tinha. Ainda que eu soubesse apenas de fotos, era como se cada vez que me pegava olhando as polaroides da época em que ela era uma moça de fitas coloridas nos cabelos vermelhos, como se a cada vez que eu reavivasse a memória pudesse ouvir o som de sua risada, sem nem ao menos tê-lo conhecido.
Tinha o coração frágil, diferente dos olhos que todos diziam que eu não herdara. Eu nascera ao meu pai, homem robusto, pernas longas e face fechada. Os cabelos tão lindos tinham morrido com ela, não havia espaço para o ruivo na negritude que pairava sobre os meus olhos, caindo naquele corte de cabelo infantil que nos faz parecer ter uma cuia cobrindo parte das orelhas.
Mas tínhamos uma família nova, uma quase mãe que sempre dedicara cuidado com meus gostos excêntricos e que desde que papai descobrira a herança que me cabia no que de mais perfeito minha mãe tinha só fazia se calar.
Eu viera com o coração dela. Defeituoso de fábrica, pronto para parar de bater com o mínimo suspiro, era um coração preguiçoso ainda que cheio de amor.
E agora estávamos ali, eu e aquele menino de doze anos que eu ganhara de presente por ter sido um bom menino, o meu irmão. O irmão que sempre desorganizava meus discos, o que parecia ter mãos vivas e que eu sempre pensara poder proteger. Talvez ele tivesse que crescer sem mim, eu precisava dizer a ele algumas coisas. Sentados ali éramos tão pequenos diante da imensidão de céu, éramos tudo que papai tinha, dois filhos e um carro e era como se eu não fosse ser parte daquele tudo por tempo suficiente para me despedir. Eu não sabia como lidar com o fato de que hora ou outra soltaria a mão deles. Foi impossível não começar a chorar.
E foi nessa hora que ele pegou minha mão, papai o deixara ali comigo para ir buscar algo comestível, quando dei por mim já não me importava se eu precisava ensiná-lo que homens não choram fácil, se eu era o exemplo que ele teria para a vida. Eu apenas queria chorar o suficiente por fora como eu já chorara por dentro na esperança boba de que as lágrimas pudessem lavar qualquer mal daquele coração meio falho.
E ele começou a falar, a voz de uma criança que não tem medo de dizer verdades.
- O Natal está bem próximo e eu pedi um presente muito bom para o Papai Noel. Mamãe diz que já sou quase um homem grande e que preciso entender de uma vez por todas que Papai Noel é o vovô e que os presentes são comprados no Walmart, mas você uma vez me disse que se a gente acredita bem forte, a gente pode fazer com que seja verdade, não é mesmo? Eu acreditei bem forte que não doeria quando você me ensinou a andar de bicicleta e eu caí e me machuquei, e doeu. Mas talvez seja porque a gente nunca consegue fazer com que acreditar seja mais forte do que a dor.
Haveria forma de dizer a ele que doeria muito ainda? Que eu precisava acreditar, mas sabia que doeria? Dei um meio sorriso.
- Então eu pedi ao Papai Noel uma caixa mágica como aquela que o papai tem e que faz com que ele arrume todas as coisas que se quebram, uma vez eu vi que ele usou para arrumar o cano da pia que mamãe disse que não tinha mais jeito, e eu também já sei que ele usa ela para remendar as coisas dentro do carro. Eu pedi para o Papai Noel uma caixa mágica e ele vai me dar, eu realmente acredito que sim.
Eu olhava o céu tão fixamente, pensando que Papai Noel poderia existir mesmo, ele não terminara a fala, eu sabia, mas agora ele também chorava.
- E Papai Noel vai me trazer a caixa... - agora ele me encarava como o homem que eu precisava saber que ele seria sem mim - e eu tentarei consertar você.
Procurei definições para explicar o que um menino de doze anos tinha feito com meu coração defeituoso naquela noite de céu estrelado dentro da gente. Meu irmão não pedira um video-game ao Papai Noel, ele não queria uma bicicleta só para ele, não queria uma viagem de férias. Ele só queria uma caixa com ferramentas como a que meu pai usava para desempenar canos e fazer consertos no motor velho do carro. Ele queria a chance de me salvar, não um coração novo, mas a chance de que ele pudesse fazer algo por mim.
E eu no auto do meu egoísmo achando que não poderia partir porque devia ensinar coisas a esse menino.
Papai Noel não trouxe uma caixa de ferramentas para ele, e infelizmente também não me trouxe um coração novo. Mas talvez eu já tivesse ganho o melhor presente da minha vida naquela noite, eu descobri que eu precisava viver muito ainda para aprender com ele, eu precisava e lutaria por isso todos os dias.
Até um coração com defeitos de fábrica tem conserto.


(Ao som de Coldplay - The Scientist e Fix You)

3 comentários:

  1. Menina sabe como é difícil me fazer chorar? E lá pela metade do texto eu já estava encharcada de lágrimas, foi impossível não sentir a emoção das suas palavras a cada linha, não sei o que comentar sobre o seu texto, só que você tem um dom, não pare de escrever nunca.

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  2. Lindo. Quase chorei com o texto. A inocência de uma criança pode ser emocionante e genial. O jeito como você descreveu os personagens, a situação... Lindo demais, sem palavras. Mereceu o primeiro lugar com certeza. Parabéns ^^

    recantodalara.blogspot.com

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  3. own, realmente me fez chorar agora. Que coisa mais linda esta que escrevestes. Este conto está realmente esplêndido. Maravilhoso mesmo. Amei.

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Lembre-se que você me faz feliz. Críticas serão sempre aceitas, desde que você use de um mínimo de educação. Eu jamais ofendo ninguém, tente prezar a reciprocidade.
Beijos!

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